Altman, o último dos pioneiros
"O amor pelo cinema é uma porta para o mundo e a condição humana"
"Nunca tive de dirigir um filme que não escolhesse ou desenvolvesse. O amor pelo cinema é uma porta para o mundo e a condição humana", afirmou Altman ao receber em março um Oscar honorário. Foi uma "mea culpa" tardia mas merecida da Academia. Altman é o diretor com maior número de indicações (cinco) sem ter vencido um Oscar, ao lado de Alfred Hitchcock, Martin Scorsese, Clarence Brown e King Vidor. A turma dá uma justa idéia de sua importância para o desenvolvimento do cinema, americano ou qualquer outro.
Robert Bernard Altman estreou como diretor rodando documentários de curta-metragem e episódios de telesséries, sobretudo policiais. Colaborou, entre outras, com "Alfred Hitchcock Apresenta" e "Bonanza". Seu longa-metragem de estréia, "Os Delinqüentes", um retrato da juventude transviada dos anos 50, completa meio século no próximo ano.
A década de 1970 foi seu período áureo. Altman a iniciou, trabalhando sempre à margem da grande máquina hollywoodiana, com "M.A.S.H." (1970), uma irresistível e demolidora sátira antimilitarista, passada num hospital na Coréia mas sintonizada com a então corrente guerra no Vietnã. O filme nasceu clássico e originou uma divertida série de TV, considerada por ele meramente mercantilista.
Pouco depois, Altman renovava o faroeste, um gênero já fora de moda, com "Quando os Homens São Homens" (McCabe and Mrs. Miller, 1971). Apesar da independência, manteve a média extraordinária de um (bom) filme por ano até atingir o apogeu. Seu titulo é "Nashville" (1975).
É talvez impossível descrever o impacto instantâneo do filme para gerações posteriores de cinéfilos. Passado na capital da música country que lhe empresta o nome, "Nashville" é um mosaico arrebatador dos Estados Unidos no bicentenário de sua independência, quando celebrações épicas mal ocultavam a ressaca nacional após o fracasso no Vietnã e a renúncia à Presidência de Richard Nixon, no ano anterior, a partir do escândalo de Watergate.
A estrutura polifônica de personagens que se alternam e indiretamente dialogam até o dramático encontro final criou imediatamente o neologismo de "um filme altmaniano". O mesmo modelo narrativo foi utilizado por ele posteriormente para, entre outros filmes, satirizar a burguesia americana ("Cerimônia de Casamento", 1978), metralhar a mediocrização de Hollywood ("O Jogador", 1992) e prantear o deserto existencial de Los Angeles ("Short Cuts", 1993).
Não lhe faltaram seguidores - e imitadores. Basta lembrar, entre os dignos de nota, "Pulp Fiction" (1994), de Quentin Tarantino; "Magnólia" (1999), de Paul Thomas Anderson; o vencedor do último Oscar, "Crash - No Limite" (2005), de Paul Haggis; e o recentíssimo "Bobby" (2006), de Emilio Estevez, a extraordinária reconstituição do último dia de vida do candidato presidencial Robert Kennedy (1925-1968) a partir de uma teia de personagens que se cruzam no hotel em que foi assassinado.
Robert Altman, porém, era talentoso demais para ser aprisionado por fórmulas. Rodou ainda tocantes homenagens a Van Gogh ("Vincent & Theo", 1990) e ao jazz ("Kansas City", 1996). Radiografou James Dean (duas vezes) e Richard Nixon ("Secret Honor", 1984). Traduziu para as telas universos tão díspares quanto os das tirinhas de Popeye (1980) e do mundo claustrofóbico de Sam Shepard ("Louco por Amor", 1985).
Tive o privilégio de entrevistá-lo por duas vezes em Cannes nos anos 1990. Altman tinha olhos cintilantes, fala mansa e pensamento rápido. Hollywood era seu alvo predileto, sempre atingido com sacadas de bom humor. O cinema vai ficar ainda menor sem novos filmes de Robert Altman.
PS - A morte de Altman alterou-me os planos quando sentava, aqui em Amsterdã, para escrever sobre a 19ª edição do Festival Internacional de Documentários, aberto na quinta-feira. Com mais de 250 filmes, entre os quais cinco brasileiros, a "Cannes do documentário" alimentará as próximas colunas. Cumpre destacar desde logo a estréia mundial, nesta sexta-feira, de "Santiago", de João Moreira Salles, dentro da mostra paralela "Mestres". A partir de um filme que rodou mas deixou inacabado, sobre o mordomo de sua família, o diretor de "Nélson Freire" realizou um dos mais complexos ensaios já realizados sobre a feitura de documentários. Aguarde.
Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.
E-mail: labaki@etudoverdade.com.br
Robert Altman está morto. Aos 81 anos, encerrou-se terça-feira a carreira de um dos raros gigantes do cinema americano após o fim da era dos estúdios, no começo dos anos 1950. "Independente" é um selo que se tornou paradoxalmente mercadológico a partir da explosão Sundance da década de 1990. Se algum diretor de cinema dos EUA mereceu o título, mais até que John Cassavetes, e tanto quanto Orson Welles, esse foi Altman.
"Nunca tive de dirigir um filme que não escolhesse ou desenvolvesse. O amor pelo cinema é uma porta para o mundo e a condição humana", afirmou Altman ao receber em março um Oscar honorário. Foi uma "mea culpa" tardia mas merecida da Academia. Altman é o diretor com maior número de indicações (cinco) sem ter vencido um Oscar, ao lado de Alfred Hitchcock, Martin Scorsese, Clarence Brown e King Vidor. A turma dá uma justa idéia de sua importância para o desenvolvimento do cinema, americano ou qualquer outro.
Robert Bernard Altman estreou como diretor rodando documentários de curta-metragem e episódios de telesséries, sobretudo policiais. Colaborou, entre outras, com "Alfred Hitchcock Apresenta" e "Bonanza". Seu longa-metragem de estréia, "Os Delinqüentes", um retrato da juventude transviada dos anos 50, completa meio século no próximo ano.
A década de 1970 foi seu período áureo. Altman a iniciou, trabalhando sempre à margem da grande máquina hollywoodiana, com "M.A.S.H." (1970), uma irresistível e demolidora sátira antimilitarista, passada num hospital na Coréia mas sintonizada com a então corrente guerra no Vietnã. O filme nasceu clássico e originou uma divertida série de TV, considerada por ele meramente mercantilista.
Pouco depois, Altman renovava o faroeste, um gênero já fora de moda, com "Quando os Homens São Homens" (McCabe and Mrs. Miller, 1971). Apesar da independência, manteve a média extraordinária de um (bom) filme por ano até atingir o apogeu. Seu titulo é "Nashville" (1975).
É talvez impossível descrever o impacto instantâneo do filme para gerações posteriores de cinéfilos. Passado na capital da música country que lhe empresta o nome, "Nashville" é um mosaico arrebatador dos Estados Unidos no bicentenário de sua independência, quando celebrações épicas mal ocultavam a ressaca nacional após o fracasso no Vietnã e a renúncia à Presidência de Richard Nixon, no ano anterior, a partir do escândalo de Watergate.
A estrutura polifônica de personagens que se alternam e indiretamente dialogam até o dramático encontro final criou imediatamente o neologismo de "um filme altmaniano". O mesmo modelo narrativo foi utilizado por ele posteriormente para, entre outros filmes, satirizar a burguesia americana ("Cerimônia de Casamento", 1978), metralhar a mediocrização de Hollywood ("O Jogador", 1992) e prantear o deserto existencial de Los Angeles ("Short Cuts", 1993).
Não lhe faltaram seguidores - e imitadores. Basta lembrar, entre os dignos de nota, "Pulp Fiction" (1994), de Quentin Tarantino; "Magnólia" (1999), de Paul Thomas Anderson; o vencedor do último Oscar, "Crash - No Limite" (2005), de Paul Haggis; e o recentíssimo "Bobby" (2006), de Emilio Estevez, a extraordinária reconstituição do último dia de vida do candidato presidencial Robert Kennedy (1925-1968) a partir de uma teia de personagens que se cruzam no hotel em que foi assassinado.
Robert Altman, porém, era talentoso demais para ser aprisionado por fórmulas. Rodou ainda tocantes homenagens a Van Gogh ("Vincent & Theo", 1990) e ao jazz ("Kansas City", 1996). Radiografou James Dean (duas vezes) e Richard Nixon ("Secret Honor", 1984). Traduziu para as telas universos tão díspares quanto os das tirinhas de Popeye (1980) e do mundo claustrofóbico de Sam Shepard ("Louco por Amor", 1985).
Tive o privilégio de entrevistá-lo por duas vezes em Cannes nos anos 1990. Altman tinha olhos cintilantes, fala mansa e pensamento rápido. Hollywood era seu alvo predileto, sempre atingido com sacadas de bom humor. O cinema vai ficar ainda menor sem novos filmes de Robert Altman.
PS - A morte de Altman alterou-me os planos quando sentava, aqui em Amsterdã, para escrever sobre a 19ª edição do Festival Internacional de Documentários, aberto na quinta-feira. Com mais de 250 filmes, entre os quais cinco brasileiros, a "Cannes do documentário" alimentará as próximas colunas. Cumpre destacar desde logo a estréia mundial, nesta sexta-feira, de "Santiago", de João Moreira Salles, dentro da mostra paralela "Mestres". A partir de um filme que rodou mas deixou inacabado, sobre o mordomo de sua família, o diretor de "Nélson Freire" realizou um dos mais complexos ensaios já realizados sobre a feitura de documentários. Aguarde.
Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.
E-mail: labaki@etudoverdade.com.br
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